sábado, 15 de outubro de 2011

Antropofagia na actualidade

Os "mercados" que nos comem, umas vezes lentamente, outras de um dia para o outro

Indignados 1000

«Fui a duas manifestações na minha vida, embora só me recorde de uma, quando os EUA de Bush II invadiram o Iraque. A outra terá sido no 1 de Maio seguinte ao 25 de Abril, assegurou-me o meu pai, que me levou às cavalitas.

Não tenho nada contra manifestações. Mas às vezes reforçam mais os propósitos que se pretendem combater do que pô-los verdadeiramente em causa. O sistema onde vivemos é uma entidade plástica, capaz de absorver tudo, mesmo aquilo que lhe é aparentemente antagónico. Não tenho por isso ilusões. Mas no sábado também vou.
Sei que outros protestos virão. Mas há um aspecto que me é simpático neste: é transnacional. É assumir o mal-estar global. Vou caminhar ao lado de pessoas que gritarão contra a crise, a precariedade, a austeridade, a desregulação dos bancos, a dívida, uma democracia mais participativa, mais transparência, melhores líderes políticos, melhores condições de vida. Tudo coisas com as quais concordo.
Mas esperem lá: conhecem alguém que não concorde com tudo isto? Pois. Eu também não. Aí estamos todos de acordo. Logo estamos a protestar contra o quê? Será que o problema não é outro? A solução é procurar culpados, propor reajustes, acreditar no aperfeiçoamento do que já temos, ou será que o verdadeiro problema é o sistema em si?
Façam um exercício. Pensem naquele dia que telefonaram para um call center e chegaram ao fim frustrados. Telefona-se por causa de uma dúvida simples e o que acontece? Ouvimos os detalhes ditos por uma operadora pouco preparada e de voz repetitiva que não nos consegue informar de nada. Nem sequer podemos descarregar a nossa raiva porque é infrutífero, não existe objecto para o fazer. Porque, como a operadora tratará de nos informar com voz de robô: “não há aqui ninguém que saiba o que quer e ninguém pode fazer nada, mesmo que pudesse.”
A zanga fica num vácuo, sem efeito, ou então é direccionada para a operadora, que é mais vítima do que agente de um sistema irresponsável, impessoal, descentralizado, abstracto e fragmentado. Podemos imaginar que com pessoas mais bem preparadas e alguns reajustes o call center funcionaria melhor. Talvez.
Mas pensem bem: o impreparação não fará parte do exercício do próprio sistema? Os vícios são engendrados pela própria estrutura e enquanto esta se mantiver, reproduzir-se-ão. E será que um call center é assim tão diferente da forma como opera um sistema financeiro de contornos indefinidos que permite a desresponsabilização?
Em 1989, como tantas outras pessoas, chorei ao ver o muro de Berlim ser derrubado. O eclipsar do comunismo pareceu-me normal. O capitalismo parecia ser o único sistema político e económico viável. Em nome do pragmatismo não valia a pena sequer imaginar alternativas.
Qualquer hipótese alternativa era sinónimo de ilusão perigosa. Ousar sequer pensar nisso era visto como uma quimera. O capitalismo liberal era a única solução. Não surpreende por isso que para a maior parte dos manifestantes, em especial os mais jovens, imaginar alternativas ao capitalismo esteja fora do seu horizonte de pensamento. Para eles isso nunca foi uma questão. E essa é que talvez seja a questão: perceber porque é que deixámos de ousar.
Quanto à minha geração adoptou uma irónica distância assente na ideia de que a nossa democracia não era perfeita, mas pelo menos não tínhamos ditadores, nem vivíamos na miséria. Tornamo-nos pós-ideológicos. Ou, noutra visão mais lúcida, a ideologia dominante começou a ser o cinismo.
É disso que estou farto. Não padeço de nenhuma ilusão bipolar. Até acho, veja-se lá, que Portugal é um país mais ou menos. Mas também sei que se não ousarmos sequer pensar – pensar, lembram-se? – em alternativas credíveis, o pragmatismo capitalista continuará a dominar.
Estou farto que me venham com o Lobo Mau dos comunismos ou dos fascismos, como se o regresso ao passado fosse a única solução de futuro. Não quero regressar a nada, nem sou ingénuo. Não me parece que venha aí uma vaga messiânica que nos apontará o caminho, nem o capitalismo vai soçobrar de repente.
Vou porque é preciso aproveitar esta energia, mesmo se envolta em contradições. Vou mesmo sabendo que vou estar imerso num hipermercado de protestos. Vou porque é necessário considerar alternativas credíveis, algo que ainda temos medo de imaginar, encapsulados no pragmatismo capitalista que, afinal, também não conseguiu mais do que nos conduzir até aqui, a este sábado de protesto global.
Vou pelo direito a imaginar um novo começo.»
(versão de um texto publicado no jornal Público de 13-10-2011)
Vitor Belanciano

Hieronymus Bosch

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