segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Crónica de um sábado

Levantar às quatro da madrugada foi como se uma pedrada na cabeça me tivesse feito o mesmo efeito que um submarino quando se afunda (no pressuposto de que sei do que estou a falar, o que não é verdade). O calor da noite pressagiava a camisa que eu iria vestir porque ia para um país frio. Ia porque não fui, já cá estou.

Viajar sozinho tem algumas vantagens e uma delas é não termos perto de nós quem nos observe, nos ajude, nos ampare e nos proteja. Somos muito mais livres. E muito mais tolos.
Check-in rápido, espera curta, avião quase no ar.

As hospedeiras da tarde, por oposição às da manhã, são à vontade mães delas. Nunca vi assistentes de bordo tão enrugadas, com tantos sulcos na pele do maxilar superior. E já agora no revestimento do pescoço e nos inevitáveis pés de galinha. O Reino Unido está mesmo pelas ruas da amargura e não me admirava nada que nos tempos mais próximos a idade da reforma para as hospedeiras britânicas fosse os setenta e cinco anos. Mas falando ainda nas que poderiam ser filhas, as da manhã, eram roliças e uma delas pelo menos com algum acne. “The Times They Are a-Changin’”, for sure. Onde vai o tempo de até as hospedeiras portuguesas não terem buço, nem rabo abrasileirado, nem nada que as tornasse comuns.
Também, no mesmo voo, um hospedeiro, negro e com um olho à Medeiros Ferreira que como sabemos era primo do JP Sartre, me pediu para eu fechar o meu laptop, e juro que não estou a mentir e muito menos a inventar!
O voo correu bem e a chegada a Londres não foi festejada com chuvas torrenciais, o que deixou logo toda a gente bem-humorada. Troquei parte do dinheiro que tenho no banco por notas enfeitadas com o Charles Darwin, o que também me deixou eufórico porque comecei a acreditar que as rugas da Rainha também já tinham sido abolidas dos papéis. Mas, também aí, muito provavelmente me iria enganar redondamente.

Procurei como se ia de um aeroporto para o outro, quer dizer, do 1 para o 2º sem ser muito caro e vi que a unicidade da intersindical também chegou aqui. 25 pounds para um trajecto acerca do qual eu pensava que não seria de esperar uma eternidade. Errado.

Andei por corredores sem chuva e cheguei ao ponto de partida de muitas chegadas. Comprei o bilhete e faltavam ainda 20 minutos. Pus-me a ver os modernos autocarros icónicos, brilhantes e de aspecto apetitoso. E fui esperando. O “meu” seria o bus 727 e continuei esperando. Vieram e foram umas boas dezenas de 205, 202, 230, 303, 311 e até um…707… mas nada.

Perguntei por duas vezes e os quatro olhos foram de uma simpatia que me deixou gelado. Com a camisa preta e barbas, apesar de tudo não muito grandes e nada pretas, senti-me próximo de um afegão. “There is love in the air.” Sure, sure.

Passou meia hora e eu enchi-me de coragem e perguntei a dois dos quatro olhos se era habitual haver atrasos de meia hora. Lembrei-me logo da lengalenga que ensinamos aos miúdos “só neste país, só neste país, é que somos felizes, felizes, levados, sim”. Eles disseram que sim, havia muito tráfego. Mesmo em frente estava parado um bus, o 205, que por mero acaso não era o 727. Os dois olhos (ou já teria sido só um?) olharam-me e indicaram-me com a cabeça que podia ir naquele. Dantes não podia mas agora já podia. Enfim. O motorista faz tudo, conduz, verifica os bilhetes e arruma as bagagens. Resmungou qualquer coisa que deveria ser do género “devias era ir no 727, aguenta que eu já ando aqui há muito tempo”, mas aceitou-me de má vontade, a companhia já não me poderia dar de volta o quarto das cem libras que tinha pago. Bingo! No espaço de poucos minutos seis olhos tinham-me beijado com ternura. Londres estava a prometer.

Sabia que o voo do 2º aeroporto era por volta das três e meia e, já com o atraso, era para aí meio-dia e meia. Decidi desculpar estes olhos, mas nunca me esquecendo que deveriam ainda ser parentes de empregados de mesa algarvios, do antigamente, “digamos assim”.
Errado. Levámos mais de duas horas em engarrafamentos sobre engarrafamentos, em motorways e em estradas que até iam passando por simpáticas aldeias e por lindos campos verdes e pacíficos. Aqui e ali, “porque hoje é sábado” (desculpa-me, Vinicius…), vi jovens e menos jovens a jogar hóquei em campo, que eu pensava que já não se jogava, e talvez lordes pequeninos a jogar golfe num golfinho junto à estrada, pais que faziam compras, vários miúdos e miúdas num carnaval que me pareceu fora do tempo mas que depois me esclareceu quando vi bruxas em corpo e osso a competir com as primas estáticas que estavam à porta das lojas.

Comecei a ficar um bocadinho aborrecido porque, se é menos mau estar num engarrafamento quando não somos nós que estamos a conduzir, não é lá muito bom quando se sabe que se tem uma ligação aérea e não se tem a mínima ideia do percurso, das escapadelas às filas, dos buracos ou obras que existissem (não vi nenhumas, o que me fez pensar que eles são mesmo ricos e já acabaram tudo). O motorista, o tal, num inglês que me pareceu mais evoluído do que os meus indianos companheiros de férias, mas também mais difícil de decifrar, desculpou-se de uma culpa que, aquela sim, não era da sua culpa e lá ia dizendo que acabaríamos por chegar. Disso não duvidava. Do que fiquei a duvidar seriamente era se alguma vez eu viveria numa espécie de IC19 gigantesco e permanente (assim uma espécie de enxaqueca que já sabemos que não vai passar). Porque, ou os britânicos começam a comprar menos carros, ou a partilhar mais as suas casas ambulantes, ou a utilizar muito mais os transportes públicos, ou uma nova e extraordinária obra faraónica vai ser preciso construir: o prolongamento da ilha, ou a criação de mais ilhas grandes com pontes com uma só via, direcionadas para enormes arranha-céus de parkings, com elevadores multicolores. Como no Dubai, até era capaz de ser bonito. Embora naquele deserto rico não haja IC19, nem M25. Felicidade a deles.

De Gatwick a Edinburgh vai quase um pulinho, sempre sobre o sol dominador das nuvens, e o aeroporto escocês pareceu-me pequeno mas é um pouco como aquela sensação que temos em adultos quando pensamos o que víamos em pequenos. Depois de Heathrow tudo é liliputiano.
Não ouvi logo gaita-de-foles mas vi que me tinha enganado redondamente e a cara redonda da rainha lá estava em todas as notas do reino! E em todas as moedas do reino! Ainda se fala, quarenta anos depois da sua morte, do culto da personalidade de Mao Tsé-Tung! É verdade que não são os dois muito bonitos mas o dinheiro também todos sabem que, além de feio, é sujo e vil.

Para além do naturalista também Churchill, Adam Smith, Robert Burns (quem? ah! sim, um poeta.), uma idosa que não deve ser a Rainha Vitória e que me intrigou, fazem companhia à actual. Que desgraça quando formos todos perseguidos pela cara do príncipe de Gales!

Ainda no avião estava entre uma mulher e um homem escoceses, presumo. Jovens como eu. Cada um via o seu filme no respetivo tablet. Mas a dona estava curiosa sobre o que é que aquele, que era eu, escrevia no portátil. É bastante bom estar a ser observado num avião quando estamos a escrever, principalmente pela razão de ser muito, muito difícil que esse alguém perceba a nossa língua. E faz-nos sentir importantes de coisa nenhuma. Assim como estar sempre a pensar e a dizer que o português é a 6ª língua mais falada do mundo e nos ficarmos a rir quando um timorense de Díli, com extremo à vontade e numa mesa ecuménica, ri com um brasileiro de Manaus, ladeado por um guineense de Bafatá, por um moçambicano da Beira, um são-tomense do Príncipe, um micaelense, um alentejano e um parvo, acerca de uma anedota sobre um dinamarquês.

Assim estava eu a rir da divulgação da língua pátria num avião da british.

Em Edinburgh, nova rodada: ninguém conhecia a máquina onde eu deveria introduzir o código do bilhete para pagar que tinha reservado pela internet. De A mandaram-me para B, daqui para C que me reenviou para A, que, espantado, me voltou a mandar dar outra volta, e mais algumas piruetas de pião. Comecei a ficar azeitado e a pensar que nem tudo o que reluz é mesmo ouro e, às vezes, a internet é escura como breu.
Perguntei ao condutor de um bus que estava para partir se ia para Dundee. Disse-me que não e para eu perguntar “lá dentro”. Fiz cara de parvo e ele disse que me podia levar até Inverkeithing. Aceitei porque sabia que dali podia apanhar o comboio para a parte final. Fui, não me fez pagar a viagem, não para ser simpático mas, tenho quase a certeza que para ele, se eu  existisse ou não, era absolutamente indiferente e o seu patrão, ou era benemérito, ou era cornudo até ao grau 100كلب , e sabe-se lá quantos viajantes sortudos não teriam já vivido aquele extemporâneo prazer.

Eu a acabar de chegar, comprar (não vamos exagerar!) um bilhete na Scotrail, receber em troca com o troco um SORRISO de uma senhora que podia ser minha tia adolescente e ter um comboio daí a 2 minutos.
Continuava com a minha camisa preta ao lado de gorros e cachecóis, e feliz.

Passada uma meia hora chegava à pequeninha estação de Dundee.
Daí a minutos aparecia a minha adorada filha.