sábado, 16 de junho de 2012

Tomar

Na pirâmide de Kéops

Via-o frequentemente.

Não vos direi que, eu mesmo, não ficasse surpreendido com essa meticulosidade. As nossas conversas, os nossos silêncios, as nossas perturbações, as nossas reflexões, a nossa felicidade, misturavam-se numa ordem cíclica, metódica mas inesperada. Porque é preciso dizer que nunca sabíamos quando seria o encontro seguinte. A imprevisibilidade era a lei e a natureza da nossa relação. Relação que era, apesar de tudo, imemorial. Eu explico-me.
O meu amigo, acho que o posso denominar assim, não era como os outros. Não digo isto pelo sentimento pedante que poderia ter por esta originalidade. Digo-o porque nunca o compreendi. E só achamos normal o que conhecemos, ou julgamos conhecer.

Ele gostava de metamorfosear-se. A magia imanente do carnavale veneziano estava-lhe no sangue, o seu rosto e o seu corpo corriam em mutação permanente. E, asseguro-vos, que isso me afectava profundamente. Mas uma espécie de louca atração impelia-me para a sua companhia. Inexorável e sincera, misteriosa e banal, mortífera e indispensável, dolorosa e visionária, reflexiva e violenta, esta companhia era
um prolongamento da alma. Ora não há nada mais enigmático e profundo do que esta.

Chegava sem avisar. Eu estava, por exemplo, sentado próximo do speaker’s corner em Hyde Park, onde um velho gentil com óculos de aros redondos fustigava o silêncio com uma reflexão sobre a virtuosidade, acho mesmo que tinha um livro sobre os joelhos e que, provavelmente, meditava sobre nada. A sua voz polimórfica interpelou-me, de repente, sobre a estagnação do prazer e da realidade movediça de Galileo, ou da pretensão muito banal de conhecer o vermelho sem nunca ter corrido na erva atrás de grandes borboletas de cores vivas. Suspendeu o fôlego antes de prosseguir “Uma partição de Mozart nunca pertenceu à dor.” O meu amigo amava as afirmações negativas. Eu, deixava-me impregnar pelo odor das suas palavras.

Alguns meses mais tarde, estávamos ambos sentados em face da montanha que observa Kyoto. A espera cadenciava-se pela nossa respiração. De repente, perguntou-me se conhecia os astros. Respondi-lhe que um dia anémonas gigantes me tinham ensinado a encontrar Capricórnio. Olhou-me fixamente e fez-me um longo discurso sobre os quatro elementos do universo: confesso que só me lembro do que amo mais: o fogo. Um fogo enorme debutava na colina em frente e, malignamente, pensei no inferno. Nunca mais regressei ao Japão.

A luminosidade nunca se tinha dado bem com o meu amigo e, contudo, os seus olhos eram como duas queimaduras. Uma vez falou-me sobre a perversidade. Vinha de um campo de batalha ainda fumegante de ardor e de faíscas. Os vencedores desse dia tinham sido os vencidos de outrora. A carnificina que eles tinham sofrido pertencia ao esquecimento. Nada, apesar disso, tinha mudado. Tinha assistido à batalha. ”Os amantes esquecem sempre que a verdade nunca está sozinha”. Lembro-me que chovia.

Eu não vivia em função de um objectivo mas unicamente cristalizado na minha incerteza. Lia Gramsci e recebia o vento na face.

Na pirâmide de Kéops apareceu-me um dia e perguntou-me se conhecia Bizâncio. Disse-lhe que tinha ido uma vez a Ravenna. Então ele abriu um velho livro bordado a ouro e explicou-me a origem do medo. Entre os tesouros do Sultão Ahmet no Top Kapi havia uma esmeralda, única, conhecida por estar na génese da sinceridade. Numa noite de verão, aproveitando a ebriedade de um dos guardas, um homem jovem com um turbante cinzento, partiu-a em mil pedaços. Na manhã seguinte o guarda foi enforcado e a tempestade instalou-se.

Neste universo híbrido, lembro-me por vezes de excertos de conversas, o mais frequente, de sensações. Não eram mais carícias lúdicas que acreditava ver refletidas na água.
Uma noite, estávamos num desses bairros lúbricos que cada grande cidade sabe tão bem estigmatizar e, ao mesmo tempo, preservar de raivas dissimuladas. Num quarto com as paredes azul claro, sujas de lassidão, um mundo de mulheres nuas escutava o relato de um conto, curiosas. Ele voltou-se para mim e fez-me um desenho num pequeno pedaço de papel; um castelo, cuja arquitectura era estranha, emergia das areias. Perguntei-lhe o que queria dizer. “Cada castelo mascara uma verdade obscura. Os homens estão errados em  não a procurar mais.” Senti-me gelado mas não ousei dizer nada.

Uma outra vez, a memória não me ajuda mais, acho que junto do Tibre, assistimos a um crime. Um homem, outrora pai, jazia morto, uma mulher ao lado olhando, petrificada, os seios tombados. De repente, uma faca estava nas mãos de um rapaz que corria, corria na direcção do poente. Segui-o. A minha personagem esperava-me e não me disse nada. Senti aí todo o peso da dor.

Uma noite, extenuado com uma página misteriosa de um poeta argentino, encontrei-me numa caverna. Pensava no enigma. Não sei como. Trouxe-me um líquido vivo e deu-me a beber. Pensei morrer. Quando acordei, o meu amigo abriu os olhos e os seus lábios mexeram-se quase imperceptivelmente “O amor está no fundo de um abismo mas só o encontraremos nas vagas.” Olhei-o mas os meus olhos não o viam mais.

Num dia com cores indefinidas veio e perguntou-me onde estava a pureza.

Mil outros encontros ocorreram sem que eu possa separá-los ou detalhá-los, ou mesmo saber a sucessão temporal. De resto, nunca tive a certeza daquilo que afirmo hoje. Não sei que força me impele mas sei que ela existe. Tudo o resto me espanta.

Olhava há pouco pela janela e lembrei-me. Uma vez, via os pictogramas dum livro muito antigo, assírio. Folheava maquinalmente as páginas. Bruscamente uma gravura, a gravura do meu amigo, enfrentou-me. Fiquei seriamente perturbado. Acho que nunca mais me refiz. O meu amigo, o meu inseparável amigo, o sonho, estava morto.

Desde esse dia nunca mais sonhei. Uma insónia crónica emprisionou-me, acho, para sempre.