sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Escandinávia, camisola amarela utópica

Cresce um movimento de boicote às viagens de avião por tudo o que elas representam na massificação e destruição de uma certa maneira de estar e viver. Com o slow food, as viagens e os retiros espirituais. As emissões de CO2 muito contribuem para isso. Essas pessoas incentivam-se (e a outros) para viajarem mais de comboio, barcos e até cargueiros. As modas são algo que detesto profundamente e esta parece-me mais uma a juntar a uma multiplicação diabólica delas, muito impulsionadas pelas “redes”sociais”.


A ideia de poluir menos, de ter comportamentos mais racionais e exequíveis (menor gasto de água, maior exigência com o meu ambiente que nos rodeia e nos faz viver), só pode ser naturalmente aceite e, se possível, concretizada. Mas estes movimentos quase sempre maximalistas, fazem imaginar modos de pensar que parecem obedecer a comandos vanguardistas que, esgotada uma convulsão, logo estarão na primeira linha de outra.

Como já referi, o turismo de massas está a destruir o turismo como conhecimento e fruição de todos os outros mundos diferentes dos nossos (e como há mundos opostos e inconciliáveis no interior mesmo de “cada mundo”!…). É uma verdade de Lapalisse já conhecida nas últimas décadas mas que aumentou exponencialmente com a baixa generalizada das tarifas aéreas e do aumento de nível de vida de fatias grandes da população. Há 30 anos eram poucos os chineses da China Continental que viajavam: as reformas de Deng Xiaoping estavam nas auroras do experimentalismo do colectivismo atávico. Volvidas poucas décadas os chineses de Xi Jinping dominam o mundo e a exploração turística. E, não sem mágoa, continuarão cada vez mais. Do exposto não se deve retirar nenhuma conclusão de animosidade especial para com estes asiáticos. Dos outrora europeus (os norte-americanos continuam a não ser muito curiosos de outras manteigas que não a de amendoim…) aos japoneses e outros poucos, a diversificação da origem dos turistas também é grande.
O que aflige, e já havia bastos exemplos disso no passado, é o modo como a grande maioria das pessoas viaja: procuram o mesmo tipo de prazer, ou muito parecido, que tiram da vida quando não estão a fazer de turistas: passam dias ou semanas em cruzeiros com condomínios de luxo, comem, nadam, descansam e saboreiam o tempo, sem nada que os estimule a conhecer o que quer que seja dos outros mundos, saem nas cidades, deslocam-se em manada, compram recordações, acotovelam-se nas filas para os monumentos, e acham tudo “very tipical”. O mesmo para as excursões organizadas onde se “vê” uma cidade numa tarde, uma vila noutra, um des(en)graçado fado numa noite ou essa beleza da irracionalidade humana que é o evento onde se espetam farpas em animais, à vista e ao aplauso entusiástico dos assistentes, sabendo que o bicho é morto depois para não ferir susceptibilidades, principalmente das crianças. Ou ainda para os resort de abundância ou aparentado onde o navio é em terra mas os marinheiros são mão de obra barata e sazonal, e onde os viajantes ficam a conhecer muito bem os grãos de areia, infelizmente não todos, que banham a praia em frente ao cercado, ou à volta das sempiternas piscinas, tudo isto mesmo não sendo na zona do Club Méditerranée. Os mesmos gelados, o mesmo tipo de animação, talvez agora também um pouco mais abertos ao turismo da natureza, mesmo que seja para ver pavões num jardim liofilizado. E as cidades? Que beleza e gosto de entrar numa Versace em Paris, que é completamente diferente da Versace de Tóquio e, para não destoar, ainda mais diferente da recentemente aberta na Cidade do Cabo. Ou Louis Vuitton, ou l’Oreal, ou Adidas, ou, ou, ou…(tenho desculpa de não saber mais mas, se fosse outro, faria uma acção de formação em marcas genuínas). Um café no Starbucks de Hanói muito diferente de outro em Lima. Ou em Oslo. E aí por diante.
Do exposto parece nutrir-se ódio a essas formas de viver. Não. Só comichão esbracejado, curado com aceitação plena das mesmas. Mas não, obrigado.
Quer isto dizer que só fazemos um tipo de turismo que fomos construindo desde a primeira viagem a Milão em 1978? Sim. Mas não foi possível, nem o quisemos, fugir a tudo. Até comemos hamburguers em MacDonald’s, mesmo em Riga ou em Swapamund.
O que é o nosso tipo de fazer turismo ( sendo claro que não somos autóctones dos países por onde passamos). Procuramos sempre não ir à espera de encontrar o que queremos, inconscientemente, encontrar. Viver o mais possível junto às pessoas, observar como se comportam, como se vestem, como são na sua maioria e descortinar, às vezes, variantes que pensamos incomuns à generalidade daquelas pessoas. Provavelmente errando. Queremos genuinamente tentar perceber como as pessoas vivem: se saem do escritório e ali mesmo, no canto do jardim, em Saigão, exercitam a meditação durante algum tempo e depois pegam na mala e desaparecem na multidão, ou se pescam nas margens de um rio indiano, em Agra, peixes desconhecidos, ou se vendem gelados numa praia de Goa, ou se trocam guturais sons em mercados livres de rua em Tallin, ou Vasta.
Provavelmente não entendendo nada, dada a nossa terrível falta de espiritualidade, percorrer o bairro copta e as suas igrejas numa parte menos apertada do Cairo, assistir subrepticiamente a uma oração muçulmana na Mesquita Azul de Istambul, assistir com alguma impressividade a um cortejo de purificação através do sacrifício de animais, nas bordas de um riacho não longe de Katmandu, apreciar o enlevo e o carinho com que os cemitérios por toda a Lituânia os cristãos ortodoxos exibem, observar os comportamentos de norte-americanos comuns ao assistirem, com pipocas a cavalo, a um espectáculo de crocodilos na Disneylândia de Los Angeles (cedência natural à pequenita de 5 anos na altura que não parece ter deixado marcas; com a retrospectiva pena de não termos visitado a Universal Pictures, ali quase ao lado); ou o arroz especialmente feito pelo sr Carlos em Pagim, Goa, ignominiosamente esquecido por se ter perdido o endereço; ou a montanha russa da bela San Francisco; ou a descida de cerca de 15 km, árida, estafante mas única, como no desfiladeiro de Samaria, em Creta; ou a viagem de moto-táxi na impressiva multidão moteira de Hanói; ou as chaminés-de-fada da Anatólia Central, ou as formações calcárias de Pamukalle; ou os sombrios templos de Angkor e da zelosa varredora do pó da floresta densa próxima; ou ouvir a conversa formal numa padaria de Besançon ou Paris; ou uma missa na Catedrale de Notre Dame ainda não devorada; ou nas maravilhosas luzes solares nas Ilhas Lofoten, já a norte do círculo polar árctico; ou as brincadeiras de elefantes-bebés no maravilhoso mundo de Etosha namibiano; ou muitas, muitas outras sensações e viveres.
Mas viajar sempre que possível nos transportes dos locais, comunicar com as pessoas ou entender o que se vai passando à nossa volta tem uma acre e desgostosa imponderabilidade: só percebendo a língua falada ou escrita, ou encontrar um interlocutor que fale uma língua moderadamente comum, se consegue algo. E existe essa sensação de termos compreendido muito pouco ou só a superficialidade das coisas, excepto no segundo país hispanófono que visitámos, Costa Rica, em Itália, em França, no Canadá (Québec).
Que pena não saber vietnamita, turco, holandês, grego, árabe, kmer, sueco, lituano, swaali, letão, alemão, gaélico irlandês e gaélico escocês, estónio, norueguês, basco, hebreu e hindi. Teria aprendido muito mais do mundo. E o meu livro teria mais páginas com vida.