sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O Mandarim

"Veio-me á idéa de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo o meu raciocinio se insurgiu resolutamente contra esta imaginação. Eu nunca acreditei no Diabo--como nunca acreditei em Deus. Jámais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para não descontentar os poderes publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades: mas que existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças amaveis,--um de barbas nevadas e tunica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos

luminosos, entre uma côrte mais complicada que a de Luiz XIV; e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas inferiores, n'uma imitação burgueza do pitoresco Plutão--não acredito. Não, não acredito! Céo e Inferno são concepções sociaes para uso da plebe--e eu pertenço á classe-média. Rezo, é verdade, a Nossa Senhora das Dôres: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis, implorei a benevolencia do senhor deputado; igualmente para me subtrahir á tisica, á angina, á navalha de ponta, á febre que vem da sargeta, á casca de laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males publicos, necessito ter uma protecção extra-humana. Ou pelo rapa-pé ou pelo incensador o homem prudente deve ir fazendo assim uma serie de sabias adulações desde a Arcada até ao Paraiso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mystica nas Alturas--o destino do bacharel está seguro."
(grafia, pontuação e acentuação da época)
O Mandarim
Eça de Queirós

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