Padre Amaro amnistiado...
"(...) e todo o clero! Ora aí tem! O cónego, já antes esfalfado dos excessos do seu furor, ficou agora, àquelas palavras, como um boi atordoado. Só pôde dizer daí a pouco, muito murcho: — Que traste você me sai! O padre Amaro então, quase tranquilo, certo do silêncio do cónego, disse com bonomia: — Traste por quê? Diga-me lá! Traste por quê? Temos ambos culpas no cartório, eis aí está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a Totó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso fazme rir. A moral é para a escola e para o sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquilo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se à velha, eu que sou novo arranjo-me com a pequena. É triste, mas que quer? É a natureza que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que temos é fazer costas! O cónego escutava-o, bamboleando a cabeça, na aceitação muda daquelas verdades. Tinha-se deixado cair numa cadeira, a descansar de tanta cólera inútil; e erguendo os olhos para Amaro: — Mas você, homem, no começo da carreira! — E você, padre-mestre, no fim da carreira! Então riram ambos. Imediatamente cada um declarou retirar as palavras ofensivas que tinham dito; e apertaram-se gravemente a mão. Depois conversaram. O cónego, o que o tinha enfurecido era ser lá com a pequena da casa. Se fosse com outra... até estimava! Mas a Ameliazinha!... Se a pobre mãe viesse a saber, estourava de desgosto. — Mas a mãe escusa de saber! exclamou Amaro. Isto é entre nós, padremestre! Isto é segredo de morte! Nem a mãe sabe de nada, nem eu mesmo digo à pequena o que se passou hoje entre nós. As coisas ficam como estavam, e o mundo continua a rolar... Mas você, padre-mestre, tenha cuidado!... Nem uma palavra à S. Joaneira... Que não haja agora traição! O cónego, com a mão sobre o peito, deu gravemente a sua palavra de honra de cavalheiro e de sacerdote que aquele segredo ficava para sempre sepultado no seu coração. Então apertaram ainda uma outra vez afetuosamente a mão. Mas a torre gemeu as três badaladas. Era a hora de jantar do cónego. E ao sair, batendo nas costas de Amaro, fazendo luzir um olho de entendedor: — Pois seu velhaco, tem dedo! — Que quer você? Que diabo... Começa-se por brincadeira... — Homem! disse o cónego sentenciosamente, é o que a gente leva de melhor nesta vida.
-É verdade, padre-mestre, é verdade! É o que a gente leva de melhor deste mundo. Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranquilidade de alma. Até aí incomodava-o, por vezes, a ideia de que correspondera ingratamente à confiança, aos carinhos que lhe tinham prodigalizado na Rua da Misericórdia. Mas a tácita aprovação do cónego viera tirar-lhe, como ele dizia, aquele espinho da consciência. "
Eça de Queirós
" O crime do padre
Amaro"
-É verdade, padre-mestre, é verdade! É o que a gente leva de melhor deste mundo. Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranquilidade de alma. Até aí incomodava-o, por vezes, a ideia de que correspondera ingratamente à confiança, aos carinhos que lhe tinham prodigalizado na Rua da Misericórdia. Mas a tácita aprovação do cónego viera tirar-lhe, como ele dizia, aquele espinho da consciência. "
(desenho retirado deste blogue...http://faltaapagarolapis.blogspot.com/2010/03/o-crime-do-padre-amaro.html?m=1)
Eça de Queirós
" O crime do padre
Amaro"
Comentários
Enviar um comentário