Café

Calmamente retira o cigarro do maço, acende-o e senta-se. A esplanada, àquela hora, está vazia. O silêncio agrada-lhe. Muitas vezes sentiu a necessidade daquele silêncio. Por vezes é tão difícil de encontrar que um raio de desespero a fere. Agora não.


Abre o livro e olha para a marca que fez no canto inferior direito. Faz sempre marcas no canto inferior direito. Sempre viu marcas de paragens de leitura no canto superior direito. Deve ser por isso que marca as paragens dos livros que está a ler dessa maneira.
Sente-se bem, dormiu bem, gosta de si.


Relê meia página anterior perto do local mais aproximado que se lembra da véspera. Recentra-se. Recompõe-se na cadeira da esplanada já não vazia. Duas pessoas, duas clientes estão agora sentadas, num dos cantos da esplanada. Falam muito baixo, sussurrando qualquer coisa indecifrável. Fica a olhar para elas, fixa o olhar nelas. Adora observar os outros. Uma está vestida com o esmero exagerado das mulheres quarentonas que vivem sozinhas, por vontade própria ou por fuga alheia. Os lábios estão carregados de roxo intenso. A boca torna-se imensa, muito maior do que alguma vez o foi. As sobrancelhas, dois arqueados e delicados traços finos, contrastam abertamente com a boca quase feroz. O nariz, pequeno, completa a face. Tem um olhar penetrante. Vê-se pela forma como coloca os cotovelos em cima da mesa de mármore. Como um felino que se apresta a saltar sobre a presa. Sempre se deverá ter comportado desta maneira. Ou talvez não. Quem sabe?
A outra, a que fala, no tal murmúrio concentrado, veste de forma banal. Uma saia azul, uma camisola azul marinho, um lenço branco, uns sapatos azuis escuros, sem meias. Ao falar mexe muito as mãos. Como se as mãos fossem prolongamentos dos pensamentos que lhe saem, seguramente, em turbilhão. Que dirão eles? Como saber o que saber? Como desvendá-los? Sabe que não é possível. Sente que se fosse possível deixava de ser possível viver assim os outros. E isso seria mesmo impossível.


É quando se senta a terceira mulher na esplanada que pára de se concentrar no par e volta a olhar a página que tinha iniciado. Lê uns parágrafos e pára. Relê de novo e fica confusa. Os desenhos estrangeiros das letras diluem-se. Levanta os olhos. Apercebe-se que quatro mulheres, sentadas, sozinhas ou juntas, dominam a esplanada. Até ali era ela só. Agora, por mais que não queira, aquelas outras mulheres são o universo, momentâneo, fortuito e inconsequente delas próprias, sem terem consciência disso. Não, ela tem e isso fá-la sorrir.
Não sabe se está feliz porque quase não há barulho, a hora dos clientes menos pacatos ainda não chegou, ou se está aborrecida porque o livro que tem nas mãos continua sem ser lido. A intromissão das outras mulheres tem adiado a sua vontade. Não é nenhuma surpresa, sabe bem que se não quer ser directamente incomodada por outros não vai ler para a esplanada de um café. Interroga-se se foi mesmo para ler um livro que foi até à esplanada daquele café ou se foi porque não queria ler sozinha, em casa.


Fecha o livro e concentra-se na terceira mulher. As mulheres do par continuam o seu monólogo aparente em que, curiosamente, a que escuta comanda a que fala com as mãos e, quem sabe, com o coração, doente. Mais uma vez, como pode intuir que a mulher que fala é infeliz só porque fala muito e outra a ouve com atenção intensa? Como pode concluir coisas de forma tão leviana? Imediatamente se recompõe. Pensa que não está a retirar conclusão alguma, apenas se limita a um exercício constante que pratica, há muito.
As mulheres do par olham atentamente para o que parece ser uma fotografia antiga. Quem será que estão a ver? De quem é a fotografia? O que terá ela de especial para ser mostrada assim? Por que é que tem de ser especial uma fotografia que é mostrada na esplanada de um café entre duas mulheres que provavelmente são amigas? Mas quem pode saber se elas são amigas, cúmplices, amantes, vizinhas ou familiares? E o que é que isso pode transformar a visão que têm da fotografia que estão a ver? A mulher que fala também com as mãos guarda a fotografia na carteira que mete na mala de couro que pousa no chão. Há um silêncio entre as duas.


Volta a concentrar-se na terceira mulher e apercebe-se que tem estado tão ocupada com o par que nem notou que outro cliente tinha entrado. Com uma bengala, um velho sentado. Pelas costas pode imaginar que é muito idoso. A curvatura acentuada não esconde o desenho delas. Sabe que o velho está a ler um jornal. Tenta com intenção, talvez exagerada, ler o título do jornal. Instintivamente. O título de um jornal que um velho lê numa esplanada de um café numa manhã de Outono é muito revelador da personalidade da pessoa que o lê. Se for “Fcgtzw”, e pelo tipo de pessoas que o lêem, imediatamente sabe que muitas das opções editoriais lhe são adversas, ou estranhas. Se for “Molkçpp”, sabe que aquele indivíduo aprecia a profundidade e o rigor das informações. Pelo menos acha que sabe. Às vezes duvida mas não gosta de duvidar. Percebe que a subjectividade da sua objectividade é mais sólida. Precisa dessa solidez. “Uma perfeita idiotice!”, sabe-o bem mas não se coíbe desse simplismo.


As duas mulheres parecem ausentes. Há alguns momentos que não falam. Uma, apoiada num dos braços, olha para a esquerda na direcção do vidro protector da esplanada. A outra remexe na sua mala, parece que à procura de algo que não encontra. Muitos segundos já passaram e são, agora, com certeza, minutos e o silêncio mantém-se. Concentra-se totalmente nelas. Ficou inquieta. Algo se passa e não sabe o quê. De repente, a mulher que olhava na direcção da rua levanta-se, diz qualquer coisa e sai. A outra, com um esgar, fecha a mala e chama o empregado. Pede outro café. Tira um livro e abre-o. Começa a ler mas o olhar, visto que agora está quase de frente para ela, é o de quem está a tentar ler mas não consegue. O pensamento está longe. O corpo presente.
Volta a olhar para a terceira mulher e repara que está a ser observada. A terceira mulher tem os dois braços pendentes, como se não tivesse mãos e observa-a, a ela. Cruzam o olhar mas a terceira mulher desinteressa-se. O seu olhar é um lampejo de sombras, indefinidas. Uma gruta escura aprisionada. Não sabe porquê mas sente que aquela mulher perdeu algo de muito importante. Um familiar, um emprego, uma vida. Um filho, talvez. Não há dor mais funda do que a perda de um filho. Nesse momento, estremece. Começa a chover dentro de si. Um relâmpago, de repente, acorda-a no pesadelo longínquo que a acompanhou ao longo do tempo e do qual pensava ter saído. Não olha para nada. Deixa de pensar no que estava a pensar, não sabe o que pensar, não tem noção de que não está a pensar. Nem sequer pode pensar no que não quer pensar. Não consegue pensar e sente que se está a afogar. A dor invade-a, avassaladora. Tira um lenço da sua mala. Olha para o livro que tem em cima do tampo de mármore da mesa do café e olha para ele como se ele fosse o vazio que a veste. Estremece de novo. Desvia o olhar na direcção das cadeiras desocupadas, deixa-o vaguear sobre o livro, pega neste e acaba por guardá-lo na mala castanha.
Levanta os olhos e apercebe-se que o velho homem acabou de se levantar, com alguma dificuldade, e se encaminha para a porta. Repara que o seu casaco está puído no sítio dos cotovelos, sinal de uso ou de poupança? Tê-lo-á porque é uma lembrança de alguém? Porque não pode ter outro? Porque não se interessa, ou nunca interessou por casacos, panos, protectores, adereços? Outro relâmpago explode na sua cabeça. Fecha os olhos e, ao abri-los, vê a curvatura do tronco do velho, mas pouco nítida. Os anos passaram também por ali, muito mais por ali. O andar não é vigoroso, antes compassado no tripé que o sustém. Acaba de sair. Colocou o chapéu de aba, desusado e gasto. O jornal entalado entre o ante-braço e a mão esquerda e o corpo.


Soluça, sente o movimento contínuo dos soluços que não param. Tira um lenço da mala e esconde a mágoa. Quando levanta os olhos a terceira mulher já não está lá. Não se apercebeu. Como é que ela saiu? Para onde foi? Quem era ela? Revisita o último olhar, ou primeiro, ou o único, que a terceira mulher lhe ofereceu e já não se lembra da cor dos olhos dela. Tenta lembrar-se da sua idade mas perde-se. Sente-se perdida e a dor, persistente, com ela.


Pega no casaco de malha beje, coloca em cima da mesa de tampo de mármore as moedas de um café e sai.
Lá fora chove dentro dela.

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