Bichos

Morgado
"Mais por adivinhar que por distinguir, Morgado antevira já uns olhos incendiados de fome a espreitá-los do coração da noite. E o patrão decerto os notara também, porque agora pusera-se a petiscar lume num seixo com a folha de aço da navalha. Como se os lobos tivessem medo das pobres faíscas que lhe saíam das mãos trémulas e garanhas! Se apenas dispunha desse recurso, se não trazia no bolso um daqueles pistolos com que nas feiras, quando havia zaragata, os homens se matavam uns aos outros, estavam liquidados. Ali só mesmo um dos tais estoiras medonhos que pareciam trovões e desfaziam os ajuntamentos num suspiro. Ou isso, ou nada. Eram já três vultos que vislumbrava na escuridão, calados, mas resolutos. Ora, em vez de sacar do tal instrumento que, a trinta ou quarenta passos de distância mandava um cristão desta para melhor, o dono, depois do ridículo arraial de pirilampos, chegou-se a ele e, sem mesmo o fazer parar, cortou dum golpe as cordas que seguravam a carga. Os sacos de centeio caíram espapaçados no lajedo.
Que raio de manobra era aquela? Pretenderia o patrão tentar a fuga? Quereria trepar-lhe ao lombo e abrir caminho pela serra fora? Nem mais. Mas uma triste ideia, aliás. Ele, Morgado, já não tinha as pernas da mocidade. Muito embora se considerasse ainda um animal capaz de cumprir o seu dever, não lhe pedissem semelhante bonito, depois de três horas de jornada, mal dormido e mal comido, e, ainda por cima, num caminho de pedras e com uma alcateia à ilharga. Tudo tem os seus limites. Além de que um macho não é bicho de correrias. Isso é lá com pilecas de ciganos."
Miguel Torga, Bichos, Morgado

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