Cega-rega


"O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar de manhã à noite, queria silêncio à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana a faria calar. Com que razão? Porquê? Porque a fome era triste, os dias passavam velozes, e urgia ajudar a natureza a ser pródiga? Imaginem! Pois que aproveitasse as horas, os minutos e os segundos, num anseio insaciável de fartura. Ela continuaria ali, preguiçosa, imprevidente, num desafio sonoro à sensatez.
- Muita alegria tem tal bicho!
- A alegria passa-lhe... É deixar vir o inverno...
A pressurosa formiga! A coitada! Como se trabalhar fosse um destino!
- E temo-lo aí, não tarda muito.
Evidentemente. Mas que lhe importava? A escolha estava feita. Que as folhas do calendário, como as das árvores, fossem caindo, e que os ceifeiros lançassem as gadanhas ao trigo maduro, numa condenação de galerianos. Que nas tulhas se acumulassem toneladas de grão. Ao lado dos celeiros atestados, ficaria um celeiro vazio. Um símbolo de inquebrantável confiança.
- Mas em quê? - perguntava um pardal suspicaz.
Outro que não compreendia. Outro que só concebia a existência a saltar de migalha em migalha.
- Chega-lhe, Cega-Rega!
O Poeta! Louvado seja Deus! Até que enfim lhe aparecia um irmão!... Um irmão que sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.
A morte que a espreitava já, com os olhos frios do Outubro..."
Miguel Torga, Bichos, "Cega-rega"

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