A China e os meus pais
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Numa tarde qualquer, de um dia qualquer, situado no ano de 1975, os meus pais foram ao cinema comigo. E? O que é que isso tem de relevante ou relembrável?
O filme passava no Cinema Universal (cujo nome já era um indicativo dos propósitos vanguardistas da época), um já velho cinema, mesmo perto do Hospital Curry Cabral e que, findas as utopias, renasceu como concha dos concertos de Rock que explodiram e não mais pararam, a não ser na morte morrida da sala.
Não sei como, nem sei bem porquê, eu tive a iniciativa e eles a disponibilidade (lembro-me que o meu pai trabalhava e a cena passava-se à tarde, e não era fim de semana (mas aqui a memória pode ser carrasca e vítima das névoas que deixamos dissipar sem sentir). E?
O filho tinha 16 anos e não deve ser fácil ter um filho aos 16 anos, ou às vezes pode mas, em pleno verão da revolução, talvez nunca se soubesse. Pensando bem, o filho não era muito difícil, não era muito difícil com eles, talvez fosse muito difícil, ou mesmo, muito mais difícil com ele próprio.
O filho drogava-se e os pais quereriam perceber o filho para o ajudar? Negativa rotunda, nem sólidas, nem líquidas, nem etéreas. O filho roubava? Nem um palito e a excepção foi um corta-papel dentro de um consulado (uma loucura aos olhos da História de Hoje! ), peripécia de Outubro ou Novembro de 75, a seguir ao garrote de bascos e espanhóis e à destruição à bomba de um emissor da RR pelo próprio Governo (!!) da altura, o VI Provisório, de Pinheiro de Azevedo, a memória que se viveu intensamente é terrível mas deliciosa, inimaginável se não fosse aquele ditirâmbico contexto.
Vamos ao ecrã, uma sala escura, pequena, não me lembro dos vizinhos de cotovelo, nem das coxias, nem da limpeza ou impureza da sala, ou se começou a horas naquele tempo em que nada funcionava a horas.
O filme era maoisticamente chinês e chamava-se "O Destacamento Vermelho Feminino"! Dança, sim!, era um ballet! Um ballet! "O lago dos cisnes dos Han"? Não. Um ballet revolucionário, daí o nome do Destacamento, podia ser a Brigada, ou Exército ...Revolucionário? Em 1975 a China estava, mas não o sabia, no extertor da Revolução Cultural que acabaria em Setembro de 1976 com a morte do adorado Ditador e a prisão seguida do Bando dos Quatro.
Não sei como, mas imagino que quisesse mostrar a beleza da utopia (se me falassem em utopia na altura eram logo bombardeados com rajadas anti-revisionistas!) aos meus pais.
Sinceramente, há distância de 45 anos não consigo entender o que me passou pela cabeça e muito menos ainda, biliões de km de distância no Além , O QUE LHES PASSOU PELA CABEÇA naquela altura.
Estariam a pensar, hesitantes, em internar-me à força num momento meu de distracção e aquela seria a forma, frustrada pelos vistos, de me deixarem apanhar à saída pelos camisas-de-forças?
Quereriam perceber melhor o filho que os tinha levado a ver um filme de... dança... revolucionária... cantado em chinês... com legendas que, presumo, eram inenarráveis, do calibre estético de "o poder está na ponta das espingardas"... "fogo sobre os contra-revolucionários!"...?
Não sei. Nem sei o seguimento dessa tarde.
Só sei, confirmei o que já sabia, mesmo que de forma inconsciente, que tinha uns bons pais, uns pais que, apesar de nada doutrinários - e ainda bem! - souberam sempre respeitar as opções, as escolhas, as vidas dos seus filhos.
E isso é um tesouro precioso e imortal.
E é bom ser rico assim.
Três ou quatro anos depois (1977,78?), amigos italianos, da sinistra (em português não soa bem...) rivoluzionaria, num postal e prendas de Brescia e Bergamo, ainda que Lotta Continua não fosse propriamente maoísta.
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