Rui Tavares na mouche de Rita Rato

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OPINIÃO

O único problema de Rita Rato

É de Rita Rato que é preciso perceber de uma vez por todas se nega ou reconhece a realidade histórica do Gulag como repressão em massa de milhões de seres humanos, se a condena ou não, e se se arrepende ou não das suas declarações passadas sobre o assunto.
Não, caros colegas historiadores, o problema com Rita Rato ter vencido o processo de recrutamento para dirigir o Museu do Aljube não é ela não ser historiadora nem museóloga. O que não falta por aí são excelentes diretores de museu, programadores culturais e gestores públicos que não são uma coisa nem a outra. Pode haver vantagem em ter um museu dirigido por quem tenha investigado o tema — que, já agora, não tem de ser forçosamente de história contemporânea: vai fazer em breve 450 anos de quando Damião de Góis esteve ali preso —, como pode haver vantagem em ser alguém de fora do meio historiográfico a fazê-lo. Tudo depende do projeto para o museu que tenha quem se candidata, e da avaliação de quem escolhe os candidatos.
Não, caros concidadãos de direita, o problema de Rita Rato não é certamente ser do PCP. Não vale a pena fazer a lista de tantos e tantas militantes do PCP — partido fundador do nosso regime constitucional democrático — que souberam gerir com competência e imparcialidade instituições públicas. Essa lista seria longa. O que valeria talvez a pena seria perguntarmo-nos por que raio assumimos com tanta naturalidade a nomeação de gente do CDS, por exemplo, para conselhos de administração de empresas públicas, e agora faríamos um escândalo por uma candidata oriunda do PCP ter sido escolhida. A não ser que Rita Rato viesse a demonstrar querer hegemonizar a história da prisão do Aljube ou apagar a memória de todas as outras correntes ideológicas, de anarquistas a monárquicos, que por lá passaram, era só o que mais faltava se houvesse uma barragem política a que alguém do PCP exercesse um cargo deste tipo.
E não, o problema de Rita Rato não é ter sido política. Se alguém pensa que a vida de um ex-político fica mais facilitada numa prova deste género, está bem enganado. Quando chega à altura da entrevista final, o empregador que quer sossego e distância de polémicas vai pensar duas vezes antes de se decidir por alguém que vai gerar falatório garantido, e os jurados que não são da persuasão política da candidata vão precisar de ver uma dose extra de qualidade para se deixarem convencer.
Em resumo e até aqui, não vejo problema em Rita Rato ser diretora do Museu do Ajube: houve um processo de recrutamento aberto em vez de uma indicação direta e se Rita Rato o ganhou entre dezenas de candidatos é porque demonstrou méritos para exercer o cargo ao qual se candidatou — o que até nem surpreende quem, sendo de um partido e de uma família ideológica bem distinta, e não a tendo nunca conhecido pessoalmente, seguiu a trajetória de Rita Rato.

Não; o problema de Rita Rato é outro — e pode mesmo ser insuperável. Não creio que Lisboa enquanto cidade, e o Museu do Aljube enquanto espaço de memória da resistência política em particular, possa conviver com uma diretora que tenha tido declarações que possam parecer como minimizando realidades historicamente comprovadas e de magnitude inescapável da repressão política no século XX.
Refiro-me, como é evidente, à entrevista de 2009 em que Rita Rato se referia ao Gulag como “uma experiência” que “admitia” que “pudesse ter acontecido”. Desde então já ouvi muitas explicações e interpretações para essas palavras: que Rita Rato era jovem; que deu uma resposta “política”; que era inexperiente na relação com a imprensa. Mas crucialmente todas essas explicações e interpretações são dadas por terceiros. Ora, Rita Rato não era então, e não o é de todo hoje, uma pessoa que precise que falem por ela. É de Rita Rato que é preciso perceber de uma vez por todas se nega ou reconhece a realidade histórica do Gulag como repressão em massa de milhões de seres humanos, se a condena ou não, e se se arrepende ou não das suas declarações passadas sobre o assunto.
É nestes momentos que importa fazer aquele exercício tão incomum no debate público: e se fosse ao contrário? E se houvesse algum político à direita que “admitisse” que os campos de extermínio fossem “uma experiência” que “pudesse ter existido”. Como reagiria a esquerda se, anos depois, e com essas declarações ainda mantidas na ambiguidade, para dizer o mínimo, a pessoa que as fez fosse escolhida para dirigir um museu que é um lugar de memória da repressão política? Bem, pelo menos eu sei como reagiria, e tento não me esquecer da indignação que sentiria nesse caso hipotético, agora que discutimos o caso real de Rita Rato.
A verdade é que um museu da resistência à repressão política com uma diretora que se permitisse não esclarecer declarações suas que podem ser vistas como minimizando a repressão política quando esta é feita em nome da sua ideologia (o que, em meu entender, até deveria levar a uma condenação mais forte) não seria um museu que se pudesse levar a sério. 
É claro que se pode ser uma pessoa que negue ou minimize a realidade histórica do Gulag. Ou pode ser-se uma diretora do Museu do Aljube que dignifique a instituição. Mas não se pode ser as duas coisas. É agora a Rita Rato que compete escolher e assim esclarecer o mais depressa possível se será para a cidade de Lisboa e para o Museu do Aljube uma mais-valia — ou uma mancha.

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