Dois deuses: Jesus e a Pimenta
"Não havia protestos agora, senão esperanças, cubiças, ambições. Não partiam á aventura; partiam á conquista do que tinham descoberto, e queriam trazer para Portugal, para casa. Ninguem duvidava do exito, e o capitão levava cartas solemnes do{pg. 221} rei para o Çamorim. Em troca d'ellas, da sua alliança, dos presentes que lhe mandavam, viriam os rubis e as esmeraldas, a pimenta e a canella, monopolisada pelo turco, inimigo de Deus!
Já na praia começava a levantar-se a basilica, monumento ingenuo d'essa religião do commercio, erguido a Jesus e á Pimenta—os dois deuses que viviam no céu portuguez (ou carthaginez): dois deuses piamente adorados, mas servidos ambos de um modo egualmente barbaro.
O almirante acaso pensava, já no Tejo, n'esse rumo de Oeste, o de Colombo, que o levaria á America; e porventura acreditava pouco na existencia do lendario Preste-Joham, por cuja causa tantas viagens se tinham feito. Não o mandavam descobrir, mandavam-no conquistar; mas elle queria tambem inscrever o seu nome na lista dos que, durante o seculo anterior, tinham pouco a pouco rasgado as trevas do mar mysterioso. A sua viagem, além de iniciar o dominio portuguez na India, teve, com effeito, as duas consequencias desejadas. Varreu as duas lendas, a do Preste e a do Mar Tenebroso: descobriu o Brazil, e veiu dizer a D. Manuel que o supposto imperador do Oriente era um miseravel rei preto, infiel, acantonado nas montanhas invias da Abyssinia.
Atraz de uma lenda, attrahido por uma voragem, Portugal descobrira os continentes e ilhas do Atlantico e chegára á India. Por uma illusão, consummára a realidade que espantava o mundo inteiro. O mundo é uma miragem, e os homens sombras levadas pelos sabios ventos do destino...
Reconhecidas as terras, sulcados os mares, por occidente e por oriente, faltava porém ainda reunir essas duas metades do mundo conhecido, e dar-lhe a volta, para se saber que cabia todo, inteiro, nas{pg. 222} mãos do homem: eis ahi o valor da viagem de Magalhães, vinte annos mais tarde.
Não ha mais trevas no mar; consummou-se a grande conquista. Mas uma nova empreza se desenha agora: devorar o descoberto, digerir o mundo.
Portugal inteiro embarca para a India na esquadra de Cabral[81]."
Oliveira Martins
História de Portugal
Grafia de 1908
Oliveira Martins
História de Portugal
Grafia de 1908
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