O riso dos risos

I
No chão três revistas abertas, um copo vazio, sujo, uma camisola verde com colo em v, enrodilhada. Junto à janela, fechada, encavalitada em dez centímetros de rodapé, um saco de mulher, esventrado, mudo. Uma luz, frouxa, de um candeeiro antigo, acesa, inútil. Três cadeiras derrubadas, uma partida sobre as outras. Livros abertos, feridos, muitos, em desordem brutal, páginas rasgadas. Pingos de sangue junto ao sofá, um fio de outros caminhando para fora da sala, perdidos. Junto a uma mísula amarela, um brinco, inerte. No ar um odor a bafio, intenso, triturado com nicotina acumulada, espessa. No enquadramento da sala, uma nuvem de desespero, final.

Radiguet, imóvel, observa mas não reage. Acabou de entrar e ainda não terminou o esgar de atrofia que o percorre. Olha para a janela e pergunta-se de onde vem o vento que o fustiga. Não há, nunca houve, vento na sala mas aquele que o varre não é irreal. Queda-se pela camisola. Não a reconhece, não sabe dizer quem é o seu, ou sua, dono, ou dona. Poderia ser dela mas não sabe, nunca soube. Levanta os olhos e percorre as estantes, desarticuladas, prateleiras ordeiras ou em desordem, sem lógica nem aprumo. Livros salvos da fúria, uns, muitos feridos de morte, vazios. De seguida vê a mesa com tampo de vidro, inexplicavelmente sorrindo para a desgraça a que escapou, mas não a compreendendo, junto à salamandra, ancestral. Não se espanta com o fio de sangue que foge da sala porque não o vê. Olhou para o candeeiro, descendo do tecto alto, e vê que faltam dois pendentes. Nunca tinha olhado para ele e agora ali estava também, ferido, mudo, testemunha central, única, do tempo. Olha de novo para a camisola, como fenda na memória, uma fotografia perdida numa praia grega, já quase noite, fresca, despovoada. Sorri mas não percebe por que sorri. Pela noite grega ou pela súbita lembrança do verde que desponta no oco da sua memória.

Fixa-se na noite grega e submerge na esplanada de sol que o atormenta. Não sabe onde está, só sabe que não está, ou só sabe que não sabe onde está. No oco da sua memória ou no verde que desponta. A luz intensa fere-lhe os olhos, tensos. Sufoca. Sai da noite. Mas perde-se do verde, indefinido.

Desloca o seu olhar para a cadeira mortalmente ferida que se esvai nas que a sustentam. Uma, agónica. Outra, incólume. Parece-lhe ver um fio de lã que destoa. Aproxima-se. Vê que o fio de lã é só um raio de seiva, sem sentido. Apanha-o com cuidado.

II

Está escuro. Em redor todas as janelas são portas, intransponíveis. Nada existe para além da folhagem, inquieta, do castanheiro que sombreia o lado esquerdo da casa. O outro lado só existe.

A casa é enorme. O sótão, há muito fechado, ignora a lassidão das vidas corridas por baixo. Muitos quartos, alguns grandes. Portas e portas fechadas, umas entreabertas, outras medonhas. Uma chaminé suja, morta. Uma escada de madeira, doente, num canto do enorme hall que esventra o silêncio. Não há degrau que não ranja. Cada pancada é um sopro, sofrido. Cada patamar uma dor, prolixa.

Radiguet está no patamar que dá para o corredor onde está o quarto. Há muito tempo que não usa relógio, não sabe que horas são, nunca foi muito importante. Não sabe o tempo que esteve sentado na cadeira. Quando se perdeu no verde impossível da praia grega, pensou nela. Não se lembra do que pensou sobre ela, só se lembra que pensou nela. O escuro da noite não é mais escuro do que o escuro do seu fundo. No fundo do seu corpo só encontra luzes intermitentes, flácidas.

A camisola verde lembra-lhe algo. Um dia numa floresta embebedou-se de um verde, profundo, total. Recua até esse tecido espesso e lembra-se do seu sorriso. Sim, sorria mas não se lembra de quê. O esquecimento persegue-o mas não o atormenta. Esquece-se do esquecimento. Lembra-se da camisola verde e volta ao quarto. Tacteia as paredes, nuas. Não sabe como chegou ali quando saiu do quarto. Não sabe como o vai encontrar. Não tem um único fósforo que mate o labirinto que o invade. Apalpa o vazio mas só encontra maçanetas, sujas, tolhidas. Continua. Não se esquece da camisola verde. Só.

Risos, remissos, vagueiam por perto.

III

Tem a sensação de que alguma coisa mudou enquanto esteve ausente. Não sabe o quê. Espanta-se. Espantado, lembra-se. A luz do candeeiro jaz morta no silêncio. Por isso foi tão difícil descobri-la. Lembra-se de quando entrou no quarto. Viu o copo, lembra-se do copo mas não compreende. As revistas espalhadas, sim as revistas espalhadas soam-lhe a propósitos, ariscos. Lembra-se dos livros e de se perguntar qual a utilidade de páginas rasgadas, mortas. Quem rasgaria folhas passivas? O odor atormenta-o. De onde vem este cheiro, néscio, que o macera? Por que é que não tem luz? Quem matou a luz? Enerva-se. Grita. O som ecoa mas desaparece. Senta-se. Encontra a cadeira, fugidia. Agarra-a e lembra-se das revistas e da praia grega. Não sabe por que é que associa ambas. Irrita-se porque não compreende. Uma dor, intensa, perfura-o, invisível e terrível. A noite lá fora não é mais noite do que a sua. A sua, interior.

IV

Olha novamente e só vê a ausência. Os ausentes serpenteiam no escuro. Ouve risos que se esgueiram quando os tenta apanhar, selvagem. Os risos riem-se e a fúria aumenta. Com um braço, bate. Dói-lhe. A outra mão apoia-lhe o braço que geme. Os risos, cruéis, rejubilam.

O escuro não abranda e nada o sossega. Cai. Adormece.

V

Quando acorda os ruídos matinais soam-lhe, cantatas. Abre os olhos. Apalpa o chão e retira, brusco, a mão. Viscosa, esfrega-a com força, ardente. Olha para o tapete. Vê o fio vermelho que desagua na porta. Levanta-se, inquieto. O que faz ali um fio de sangue? O que é que aconteceu? Ouve de novo os risos e, pela primeira vez, ri-se deles. Ri. Ri perdidamente. Os risos calam-se e ele assusta-se. Tem medo. Radiguet tem medo. A janela continua fechada mas agora vê o dia sombrio que se esconde. Dá um salto. Senta-se, espera. Vai até à janela e abre-a.

Lá fora chove, o castanheiro chora, nada acontece.

Volta-se para trás. Fixa o olhar no riso dos risos que lhe apontam o fio de sangue. Colérico, desfaz a cadeira, moribunda. Tenta golpear os risos mas é incapaz. Ainda mais colérico, volta a cair. Tacteia de novo o chão, agora junto à mísula amarela. Intriga-se. Agarra-o. Pega no brinco. Põe-se em pé, aterrado.

Sai a correr.

O corredor acompanha-o até às escadas. Pára. O fio vermelho prossegue-o. Grita. Os risos endemoniam-lhe a voz. Grita e nenhum som sai. Olha para os degraus. Lembra-se. Um grito, mortífero, arrasa-o. Afónico.

Voa nos degraus, chega à agora conhecida cozinha e vê-a.

VI

Lembra-se agora de tudo. Espanta-o a nitidez da memória. O riso dos risos está acorrentado a tubos, sólidos. Tudo se encaixa.

Lá fora o sol venteia, só as paredes, cruas, o olham. Os sons, temerosos e longínquos, das chaves e dos corredores, punitivos, acompanham-no.

                                                            Besançon, 4 e 5 de Agosto de 2010