Trápio

Trápio

Não se assustem. Sou eu, o cão. Melhor, um dos cães. Acontece que sou o único que escreve. Todos os outros são, ou eram, só os outros cães. Nenhum deles escreve, nem sequer desenha ou pinta. Está também excluída a possibilidade de dançar, ou ainda mais inverosímil, de pensar.

Acredito que estejam com imensa vontade, se é que não o fizeram já, de não perder tempo com mais uma idiotice, agora que todas as idiotices são permitidas, que todos os cães es… perdão!, que todas as pessoas escrevem e têm milhares de coisas novas para dizer, coisas profundas, coisas verdadeiras, coisas únicas, coisas universais e coisas autênticas. A democracia escritural veio para ficar, foi o que ouvi dizer, não sei. Eu só, apesar de parecer grotesco, me ocupo de canicidades, como um cão. Deixo as humanidades para os humanos. Que bem precisam, li algures.

Estarão a interrogar-se: como é possível que a impossibilidade esteja mesmo aqui diante dos nossos olhos? Boa pergunta para a qual não tenho resposta porque, pelo menos segundo um dos ângulos da perspectiva, respondido está: se não fosse possível não me estariam a ler, parece-me consensual.

O meu dono, nem tudo é perfeito, era um eremita. Não gostava de barulhos, confusões, e coisas que tal. Suportava muito bem os nossos latidos e as nossas conversas caninas só porque era o nosso dono, o que poderia ele fazer de outra forma? Nesse aspecto não era, decididamente, heterodoxo.

Chamava-se Trápio e, com um nome destes, nunca foi feliz. Desde que se conhecia que era motivo de chacota e escárnio da parte das outras crianças.

A própria mãe achava o nome horroroso e, quando lhe perguntavam por que é que ela o tinha posto, inflamava-se como um polvo que está prestes a urinar o seu saco de tinta e gritava, sim, gritava, que tinha sido aquele velhaco que tinha conhecido na festa da aldeia e que lhe tinha prometido a lua, para logo ali, e outros planetas para depois, quando a vida lhes corresse melhor, mas que no final da noite tinha desaparecido para nunca mais aparecer.

Naqueles tempos havia outros nomes não… consensuais, mas nada que se parecesse com o que se passa em certas zonas do mundo humano hoje, onde um Parrylson pode muito bem conviver com uma Clessélica e terem um casalinho amoroso chamado Esnaider e Irânica.

Depois, já na adolescência, ninguém do sexo feminino o queria para companhia. Nem sequer o olhavam bem nos olhos ou noutra parte mais púdica do seu corpo porque já sabiam que, se abrissem a boca, um riso escancarado se soltaria logo e elas tinham mais que fazer. Os do sexo masculino aceitavam-no só porque gostavam de gozar com alguém e Trápio não teria sido melhor escolha para a terapia ocupacional daqueles ingénuos jovens.

Assim foi crescendo até tornar-se adulto e eremita.

Como não falava com ninguém, a pouco e pouco foi ficando como se estivesse permanentemente afónico, o que o angustiava ainda mais. Não só não tinha ninguém com quem falar, como, se tivesse, acabaria por não conseguir dizer nada que se percebesse, ou que fosse interessante, ou no mínimo dos mínimos, audível. A pouco e pouco foi-se desinteressando de tudo, de todos e dele próprio. As roupas foram-se degradando sobre a sua pele até ficarem numa fina e sujíssima camada cutânea especial, na qual a densidade do sujo se misturava com as células da epiderme, já não se sabendo se a sujidade era só sujidade ou se não seria já uma nova camada que se teria formado, paulatinamente, ao longo do tempo, dando assim origem a uma epi-epiderme, ou dupla-epiderme, para sermos mais rigorosos.

O cheiro que exalava da sua presença era, cada vez mais, insuportável para todos. Menos para ele e para nós. O que era uma vantagem comparativa.

Trápio, no seu isolamento, foi adoptando cão vadio atrás de cão vadio e quando descia ao povoado, primeiro um, depois alguns e, por fim, muitos cães o espaldavam, orgulhosos por alguém se interessar por aquilo em que mais ninguém se interessava e poderem assim sentir-se gente, melhor, cães com individualidade e carácter. Mesmo que a individualidade e o reconhecimento social fosse tão nítido como um dia de nevoeiro escocês.

O problema só começou a complicar-se quando a matilha atingiu dimensões de difícil gestão, quando quezílias internas e quando muitos ciúmes árduos se foram multiplicando. Aproveitando uma luta que ameaçava degenerar, Trápio disse basta! e não aceitou mais nenhum cão vadio na sua família. A família não é mais família só por ter o nome de família, embora se diga que o seu nome de família é uma espécie de passaporte genealógico que nos protege não sei bem do quê mas deve ser verdade.

Éramos doze e doze ficámos. Trápio sentia que no ar havia qualquer coisa de injusto, porquê aqueles doze e não outros doze, ou ainda nenhum daqueles vinte e quatro e outros doze, e por que não dez, ou quinze? E se fossem trinta e seis, que horror!, aí já seria demais, por isso se era preciso estabelecer um tecto a não ultrapassar, que se lixasse o onze e o treze, é sempre assim quando estamos no limite superior ou no oposto. Há que decidir e só os trouxas é que decidem o que já está decidido.

Sempre que pensava muito Trápio tinha dores de cabeça terríveis que só acalmavam quando o deixava de fazer, o que em certas ocasiões seria extremamente oportuno se ele não fosse heterodoxo, se não tivesse um nome tão assassino e se não fosse eremita.

O mais difícil era não se conseguir eludir que doze, há muitos, muitos, muitos anos, tinham sido doze à volta de uma mesa e um ao centro. A analogia que as pessoas faziam era telúrica e não havia pedra, rocha, calhau, parafuso, cabo de vassoura, chaves de fendas ou até ratos de computador que não servissem para, pelo ar, serem arremessados com intenções mortais. Se já era difícil o ostracismo a que Trápio estava indissoluvelmente ligado e o abandono a que nós tínhamos, todos, sido caninamente votados, esta ulterior rejeição era penosa e inquinante, até inquietante.

Mesmo as coisas comezinhas como roubar um osso num talho, ou dormir junto à fonte da aldeia, tornavam-se impossíveis e perigosas. Com uma forte sensação de perda social e de injustiça moral, a heteredoxia de Trápio foi-se colando ao pêlo de cada um de nós e isso teve o condão de, os treze em conjunto, nos sentirmos, ainda mais, uma verdadeira família.

A sua experiência tendo sido dolorosa, Trápio não baptizou nenhum dos seus cães com nomes, mesmo que fossem inócuos como Bolinhas, ou Rintintim ou o mais popular de todos, assim como Manuel em certas épocas históricas, Piruças!

Trápio não pretendia fazer aos outros o que lhe tinham feito a ele. Era eremita mas não tinha mau carácter e essa era uma questão muito interessante: sem pai, ou com pai à hora, senão escassos minutos, com mãe descabelada e cedo também ausente, sem tios e avós e primos, sem normas sociais nem evangelização dominical, como é que um ser humano, frágil, desacompanhado, desintegrado … tinha uma índole tão boa e tão sã. Há mistérios, que só alguns conhecem ou têm a sorte imensa de terem assistido ao vivo à continuação deles, que são a própria verdade revelada da misteriosidade.

Assim vivíamos, umas vezes sem preocupações de maior, até porque éramos simples, sem pretensões ou exigências descabidas, como Trápio, aliás; outras com preocupações, algumas bem gritantes como quando, por infelicidade, comíamos directamente dos caixotes de lixo um alimento estragado, e logo uma diarreia gigantesca nos atacava perfidamente, agravado por aquele singular costume que nós, cães, temos de cheirarmos certas partes da anatomia dos nossos semelhantes, horrível para os gentios mas socialmente muito gratificante para nós, com o risco de expansão do contágio e a consequente epidemia de águas sujas e dejectos ambíguos.

Tudo se agravava nessas alturas. Se já éramos tão desejados como habitantes balcânicos em sítios errados, a exclusão tornava-se violenta. Os ratos de computador, as chaves de fendas, os cabos de vassoura, os parafusos, os calhaus, as rochas e as pedras não chegavam: nessas trágicas alturas batalhões de humanos com foices, forquilhas, ancinhos e, mais recentemente, com tacos de basebol e correntes de ferro, percorriam as ruas, uivantes e enraivados, à procura de excrementos no chão, sinal mais do que óbvio que a nossa presença não era falsa.

Só escapávamos porque em desenfreada corrida nos afastávamos para as cercanias e nunca mais nos voltávamos para trás, como se cada povoação abandonada fosse mais um prego no caixão da nossa diáspora social.

Assim se foram passando os anos no calendário onírico das nossas lembranças. Pouco a pouco o nosso sagrado número foi sendo fustigado com doenças, aquecimento global, bactérias, terrorismo e intempéries várias e, um a um, fomos abandonando o nosso pequeno mundo.

Quando Trápio já só era acompanhado por seis dos seus todos outrora fiéis companheiros, a foice inelutável chegou e talhou-lhe o corpo. Com o capuz venal, tapou-lhe as córneas e levou-o para longe.

Dos indefesos sobreviventes, dois foram apanhados pela carrinha da câmara, tal era a sua fraqueza corporal mas também mental, uma vez que isso aconteceu dois dias depois de Trácio ter partido definitivamente, e os outros três espalharam-se cada um para seu lado, uma vez que sempre tinham manifestado, mesmo quando éramos um família feliz, tendências separatistas e rebeldes, só atenuadas com a nossa sempiterna canicidade, ou seja subjugação, ou subserviência.

Fiquei eu. Logo o único que estaria em condições de vos contar este pedaço de vida. Não me perguntem porquê.

Eu só sou um cão.