Que ter vão era

Há muito tempo que morri, como não sei, foi antes de ter nascido, agora como, como, não sei. Acho que nasci quando adormeci da morte em que morava, bem aconchegado no calor da água, vivia nessa altura de sons e de memórias que me lançavam pelo vento fora sem rumo, mas feliz. Viajava imenso sem saber por onde ia, ou para onde ia, que importava o comboio que nos levava se nos levava, há quem não viva porque medo tem, que medo ter da alegria, e do nada, o medo, que grande a invenção dos medos, a invenção dos medrosos, a única, a fútil, a minúscula invenção dos medrosos porque justificava a existência, ou a falência, dos corajosos porque lhes dava substância e fogo, sem se ver, mas quem precisava deles, de medrosos e corajosos, só se precisava ser, mais nada, ser e mais nada, nasci então quando morri,


Vim e tudo era novo, mais novo do que todo o velho que havia visto, e se havia visto, montanhas, nuvens, risos, vulcões, aves, dores, tempestades mas agora não, nada era igual, todo o diferente era uma crosta que levantava da minha pele escamada, nessa altura peixe azul, alimentando-me de luzes e de trevas. Acordei numa praia de vento e vi homens com máscaras que bebiam danças de encantar, um com um elmo de penas na cabeça atiçando a dor dos que bailavam, submissos mas austeros, livres, porém. E eu, embondeiro de papel, me lançava, me deixava embalar pela dança que não ouvia mas bebia, vendo.


Num relâmpago de cores vi páginas, milhares de páginas, milhares de milhões de páginas, umas escritas ou por escrever, páginas das vidas que vividas não ainda sido tinham, ou muito tinham, sabedoria desenhada nas páginas desse tempo, o tempo sem fim, até desconhecido do fim.


Vozes ensinavam-me que ter vão era, mais valera ser, recomeço sempre esquecido mas aprendido, às vezes morto, muitas vezes sepultado, quase sempre pobre.


À tarde nas asas de um rubi, deixava-me cair nos sonhos do futuro, sem saber que o futuro não existia, mentira dos ladrões, ladrões da verdade, sim. Todo o futuro presente é, nada do que ainda não foi será, só é o que é, nem o que já foi pode ser, se foi foi, o que foi não é. Nas asas do rubi, cansado, batia-me o vento e sentia, só, sem mais nada, assim.


Acordava de noite nos braços eternos das nuvens e das sereias e chorava quando sonhava que um mais um não era sempre dois, muitas vezes era mesmo dois menos zero, ou zero, mesmo zero, barriga colada de vileza e ausência e tristeza e carência.


Agora que era noite apalpava as pétalas dos risos sem fim, que ouvia sem ver, sem dor, e adormecia por fim na morte em que vivia, há espera, há espera de novo dia, o nascimento que me devolvia e me envolvia e me revolvia, sem fim, por fim.